Dados em perspectiva histórico-mundial
CWEdata reúne dados de diferentes fontes, estruturados territorial e temporalmente, e que permitem análises em perspectiva histórico-mundial da economia e do sistema internacional.
“Se na Inglaterra é inventada uma máquina que na Índia e na China tira o pão a inúmeros trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invenção torna-se um fato histórico-mundial; ou pode-se demonstrar o significado histórico-mundial do açúcar e do café no século XIX pelo fato de que a falta desses produtos, resultado do bloqueio continental napoleônico, provocou a sublevação dos alemães contra Napoleão e foi, portanto, a base real das gloriosas guerras de libertação de 1813.”
— Karl Mark em A Ideologia Alemã
A economia-mundo capitalista é definida em termos de fenômenos espaciais e temporais.
Não é novidade que existe um esforço para superar as fronteiras disciplinares entre economia, política, sociologia e história. Também não é recente a tentativa de construir uma ciência social historicamente fundamentada. Não obstante, a parte mais difícil dessa tarefa foi, e continua sendo, estabelecer um diálogo entre a economia e as demais ciências sociais, bem como entre as ciências sociais e a história. É nesse diálogo que surge o pertinente e persistente questionamento de qual seria o lugar das fontes informacionais qualitativas e quantitativas. Em especial, sobre o lugar dos dados e dos modelos estatísticos no esforço para superar as fronteiras disciplinares. Ou ainda, se existe um ordenamento adequado para integrar tais fontes?
Nesta mensagem, que inaugura o CWEdata, buscamos responder essas perguntas levando em consideração a necessidade de encaminhar o diálogo entre a economia com as ciências sociais e a história, bem como apontar o papel da matemática e da estatística nesta interlocução. Para tanto, primeiro, exploramos o argumento de Karl Polanyi sobre a falácia economicista. A partir de Celso Furtado, ilustramos as implicações desse sofisma. Para contornar o equívoco argumentativo economicista, recuperamos a contribuição de Fernand Braudel sobre os tempos históricos e sua crítica às ciências sociais. Apontamos, com base em Immanuel Wallerstein, o tipo de estatística que se faz necessário para a construção de perspectivas histórico-mundiais. Por fim, destacamos a importância de se integrar bases informacionais qualitativas e quantitativas disponíveis.Muitos anos atrás, em seu livro A Grande Transformação, Karl Polanyi (2012a [1944]) assinalou que todos os ramos das ciências sociais foram estabelecidos sobre a hipótese de Adam Smith da propensão natural do homem à troca. Para Polanyi, ao partir dessa hipótese, o pensamento social do século XIX desenvolveu a mentalidade de mercado que resultou na falácia economicista, i.e., um erro lógico no qual a economia humana é equiparada com a forma específica do mercado. Na análise do autor, este mal-entendido tem origem na definição formal de economia, a qual, além de isolar a dimensão econômica das demais esferas da vida, a compreende logicamente como relação de meios e fins, em que o agente satisfaz suas necessidades e desejos minimizando os meios. Como resultado, a produção material da vida não só é reduzida a um problema de escassez, mas também é enunciada como uma verdade universal. No entanto, escassez e escolha relativa são, para Polanyi (2012b [1977], p. 72), uma situação especial onde “[…] economizar ou conseguir algo abaixo do preço, refere-se à escolha entre usos alternativos dos meios insuficientes”. Portanto, Polanyi argumentava que o conceito formal de economia induz historiadores econômicos a transplantar esta forma específica de economia para outras sociedades e cientistas sociais a assumir seu significado sem questionamento. A crítica de Polanyi sugere que ambos, cientistas sociais e historiadores, têm compreendido mal o lugar da economia na vida cotidiana e, principalmente, como ela se conecta com as demais esferas da vida. No entanto, é importante reforçar que em nenhum momento Polanyi colocou em dúvida a análise econômica. Seu objetivo era estabelecer os limites históricos e institucionais dos mecanismos de formação de preços nas economias.
Como alternativa, Polanyi propunha uma visão substantiva da economia, na qual a subsistência do homem, a produção material da vida, deveria ser teorizada a partir da relação entre o homem e a natureza e entre o homem e seus pares, podendo ou não envolver a escolha no sentido das escolhas de mercado. A antropologia contribui com a visão de que costumes e tradições podem eliminar o problema de escolha. A partir dela, Polanyi pretendeu transcender as limitações inerentes à análise econômica contribuindo assim para uma teoria geral da organização econômica.
Do nosso ponto de vista, a crítica de Polanyi é bem-vinda. Aceitá-la não significa admitir qualquer superioridade de seu esquema analítico, apenas indica um passo importante no sentido da necessidade eminente de abrir as ciências econômicas. Além de dar importante passo na desconstrução da ciência econômica mainstream, a distinção entre economia formal e substantiva estabelecida por Polanyi se mostra muito útil no processo de estabelecer uma ponte entre as ciências econômicas e as demais ciências sociais e destas com a história. Ela também coloca em dúvida a identificação do caráter científico da economia com a economia positiva. Celso Furtado (1974, p. 113-115), por exemplo, em Objetividade e Ilusionismo em Economia, expôs bem essa limitação:Para que o preço do feijão fosse algo rigorosamente objetivo deveria ser, como se ensina nos livros texto, a resultante da interação de duas forças, a procura e a oferta, dotadas de existência objetiva. Seria o caso, por exemplo, se a oferta de feijão dependesse apenas da precipitação pluviométrica e sua procura das necessidades fisiológicas de um grupo definido de pessoas. Mas a verdade é que a oferta de feijão está condicionada por uma série de fatores sociais com uma dimensão histórica, os quais vão desde a manipulação do crédito para financiar estoques até o uso de pressões para importar ou exportar o produto, sem falar no controle dos meios de transporte, no grau de monopólio dos mercados etc. Da mesma maneira, a demanda resulta da interação de uma série de forças sociais, que vão da distribuição da renda até a possibilidade que tenham as pessoas de sobreviver produzindo para a própria subsistência. Quando se aplica o método analítico a esse fenômeno (o preço do feijão), o economista diz: constantes todos os demais fatores… Quando se percebe essa diferença epistemológica, compreende-se sem dificuldade que em economia o conhecimento científico, isto é, a possibilidade de se verificar o que se sabe e de utilizar o conhecimento para prever (e, portanto, para agir com maior eficácia), não pode ser alcançado dentro do quadro metodológico em que vem atuando a chamada “economia positiva”.
No esforço de estabelecer um diálogo entre as ciências sociais, Fernand Braudel (1992 [1959], p. 43), no artigo clássico História e Ciências Sociais A Longa Duração argumenta, com base em sua concepção dos tempos históricos que a longa duração seria “indispensável a uma metodologia comum das ciências do homem.” Nesse empreendimento, Braudel não descartava a utilização de métodos quantitativos como guia e suporte para a formulação de modelos empíricos, na verdade ele estava preocupado com o efeito do tempo sobre estas representações. Braudel (1992 [1959], p. 68) dizia que “os modelos eram de duração variável: valem o tempo que vale a realidade que eles registram”. Deste modo, modelos não são atemporais nem aespaciais. Portanto, não são universais. Nesse sentido, os modelos estatísticos podem se mostrar estatisticamente significativos tanto no tempo quanto no espaço. Além disso, não há por que insistir em uma espécie de culto ao nível de significância quando sabemos que ao minimizar a probabilidade de cometer o erro do tipo I (quando a hipótese nula verdadeira é rejeitada) podemos dizer que estamos praticamente maximizando a probabilidade de cometer o erro do tipo II (quando uma hipótese nula falsa não é rejeitada).
Ao observador social, insistia Braudel, o tempo, a duração, “é primordial, porque, mais significativos ainda que as estruturas profundas da vida, são seus pontos de ruptura, sua brusca ou lenta deterioração sob o efeito de pressões contraditórias”.
Nesse sentido, Braudel (1992 [1959], p. 68) propunha que:“… a pesquisa deve ser sempre conduzida, da realidade social ao modelo, depois deste àquela, e assim por diante, por uma sequência de retoques, de viagens pacientemente renovadas. O modelo é assim, alternadamente, ensaio de explicação da estrutura, instrumento de controle, de comparação, de verificação da solidez e da própria vida de uma estrutura dada. Se eu fabricasse [estimasse] um modelo a partir do atual, gostaria de recolocá-lo imediatamente na realidade, depois fazê-lo remontar no tempo, se possível, até seu nascimento. Após o que, calcularia sua vida provável, até a próxima ruptura, segundo o movimento concomitante de outras realidades sociais. A não ser que, servindo-me dele, como de um elemento de comparação, eu o faça passear no tempo ou no espaço, em busca de outras realidades capazes de se iluminar graças a ele, com uma luz nova.”
Influenciado tanto por Polanyi como por Braudel, Wallerstein (1974) também se vinculou a este empreendimento de repensar as ciências sociais herdadas do século XIX. Wallerstein liderou, no âmbito da Comissão Gulbenkian (1996), um trabalho de revisão dos fundamentos epistemológicos das ciências sociais a partir das críticas às fronteiras disciplinares, ao falso sentido de universalidade e à validez de distinção entre as “duas culturas”. Wallerstein et al. (1982) insistiam recorrentemente sobre a indisponibilidade de dados ajustados à economia-mundo capitalista como unidade de análise. Embora de inegável valor, as estatísticas econômicas, políticas e sociais coletadas em nível nacional, subnacional, domiciliar ou individual têm certas limitações na medida em que ignoram, entre muitos aspectos: a) a espacialidade das atividades econômicas através do tempo; b) a não correspondência entre as fronteiras estatais e as atividades econômicas; c) o caráter relacional das atividades econômicas. Sabe-se também que são relativamente escassas as comparações sistemáticas sobre as mudanças que as reversões dos ciclos de Kondratiev provocam nas zonas centrais, periféricas e semiperiféricas, como também são raras as comparações metódicas através do tempo, principalmente na longa duração.
Portanto, o projeto de abrir as ciências sociais, no sentido acima descrito, nos remete necessariamente à utilização combinada das complementares fontes informacionais qualitativas e quantitativas. Não seria concebível adotar procedimentos eficazes e eficientes, coerentes com esse esforço, sem a consideração simultânea e sinérgica de ambas as abordagens metodológicas. Tanto o esforço de conceituação de sistemas classificatórios e de estratificação quanto o de conciliação de prioridades não poderiam ser obtidos de forma razoavelmente fidedigna sem o uso articulado destas duas bases informacionais. Trata-se de explorar uma espécie de espiral progressiva simbiótica e, portanto, virtuosa, entre ambas, onde uma abordagem gera elementos e resultados que dinamicamente nutrem a outra. Em outras palavras, assumimos o pressuposto de que estudos quantitativos exigem estudos qualitativos prévios que desenvolvem conceitos e apontam variáveis (ou ao menos necessidades de mensuração), ao passo que análises de interesse teórico necessitam em diversos momentos de evidências estatísticas para distinção de detalhes sutis e decisivos de comportamento social (valores, expectativas e ideologias).
Para atender a este propósito, é necessário conceber uma abordagem que pressupõe e envolve análises amplas o suficiente para conter a dinâmica dos processos de mudança social (estruturas nas quais as múltiplas contradições se realizam e revelam), a qual só é possível através de um enfoque metodológico robusto o bastante para identificar padrões histórico-mundiais de continuidades e rupturas. O esforço de descrever as realidades sociais através de conhecimento codificados com base em números e indicadores, sem mácula do quantiativismo, possui o poder de influenciar o processo de tomada de decisão acerca das políticas púbicas de forma mais assertiva, uma vez que condicionam e estão condicionadas pelos níveis de expectativas e probabilidades de eventos futuros. Um exemplo desta possibilidade de compreensão mais completa (ou ao menos mais próxima disto) se observa no processo de recondução de cientistas sociais a lançarem mão da exploração de frequências, tendências e relações causais que as bases de dados (cada vez mais amplas e estruturadas) admitem, visando entender os diversos e complexos riscos e oportunidades do avanço da mercantilização da vida.
Diante da discussão apresentada, que é mais ampla e profunda do que neste breve ensaio foi caracterizado, entendemos que o esforço de superação das fronteiras disciplinares, além da revisão dos fundamentos epistemológicos das ciências sociais como proposto por Polanyi, Braudel, Furtado e Wallerstein, requer também uma integração das diferentes bases informacionais. No entanto, tal processo precisa necessariamente ser orientado à proposição de formas alternativas de emprego das métricas, métodos e metodologias de mensuração e estimação existentes, de modo que se mostrem mais adequadas às necessidades de análises histórico-mundiais, tornando-as assim mais robustas. Isto, porém, deve ser conduzido sob o indispensável mais alto nível de rigor metodológico que o senso de responsabilidade e a aplicação fidedigna requer. Só assim, tanto a descrição do passado quanto as eventuais previsões do futuro feitas a partir de recortes da realidade (no tempo e no espaço), habilitarão os cientistas sociais à identificação das decisões sociais relevantes. A proposição de intervenções estratégicas eficazes na busca da erradicação (ou ao menos mitigação) dos fenômenos não desejáveis a partir de uma compreensão que amplamente possa ser considerada sustentável (socialmente justa, ecologicamente correta, culturalmente aceita e economicamente viável) depende disto. Decisões essas que não estão livres de viés, mas que não podem nos deixar esquecer que o custo do erro pode ser socialmente interpretado como sendo o mais caro.
Braudel, F. (1992). Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva.
Costa, C. (2005). Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 3a. ed. São Paulo: Editora moderna.
Furtado, C. (1974). O Mito do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Hopkins, T. K., and Wallerstein, I. (1982) World-Systems Analysis: Theory and Methodology. Vol. 1. SAGE Publications, Incorporated.
Polanyi, K. (2012a). A Grande Transformação: as origens da nossa época. 2a. ed. Rio de Janeiro: Elsevier.
Polanyi, K. (2012b). A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto.
Sciences., Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social. (1996) Abrir las ciencas sociales: informe de la Comisión Gulbenkian para la reestructuración de las ciencias sociales. edited by I. M. Wallerstein. Mexico: Siglo veintiuno editores.
Wallerstein, I. (1974). The Modern World-System I Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. University of California Press.
O enfoque regional ganhou destaque após o final da Segunda Guerra Mundial a partir da temática do crescimento desigual e das consequentes desigualdades socioespaciais envolvidas no processo de reconstrução dos países. Dentre as principais contribuições destacam-se Perroux (1950, 1969), Hirschman (1958) e Lipietz (1977). Na América Latina, esta temática reverberou sobretudo nos estudos da Comissão Econômica para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CEPAL) que não apenas concebeu o esquema centro-periferia (Prebisch 1986 [1949]), como também buscou elaborar tipologias dos padrões de desenvolvimento a partir de uma perspectiva sistêmico-mundial, como observado em Sunkel e Paz (1970). Visando complementar este quadro analítico, do ponto de vista dos sistemas de dominação, destaca-se as situações de dependência de Cardoso e Falleto (1984 [1970]) e, do ponto de vista da dinâmica da renda, os aportes de Celso Furtado (2003 [1959], 2007 [1969]). Destaca-se também as contribuições de Marini (1973, 1974). No tocante aos diálogos do debate latino-americano sobre o desenvolvimento com a Análise dos Sistemas-Mundo ver Santos (2011, 2016, 2018). Para ver aplicações da Análise dos Sistemas-Mundo a partir do enfoque regional ver Moraes (2000) e Becker e Egler (2003).
Giovanni Arrighi e Jéssica Drangel (1986) propuseram uma definição operacional para identificar a estratificação mundial da renda a partir do comando econômico dos países sobre os benefícios globais da divisão mundial do trabalho. A metodologia proposta consiste essencialmente em calcular a distribuição de frequência do percentual da população mundial por intervalos de renda, suavizada através da média móvel de três intervalos do log da PNB per capita. A distribuição modal resultante permite inferir através do tempo o esquema clássico centro-periferia proposto pela CEPAL (1949), bem como verificar a existência e estabilidade da zona semiperiférica conforme sugerido por Wallerstein (1974). O CWEdata aplica está técnica aos dados de renda e população estimados pelo Maddison Project Database (2020).